quinta-feira, 3 de março de 2011

Março de 2011

Ontem foi dia de saída. Não éramos muitos porque a troca de dia impediu que todos soubessem a tempo.
A avaria da carrinha do Centro também veio alterar a programação. Assim, regressámos às origens arrumando as  coisas e as pessoas como pudemos, nos nossos carros.
Diminuídos de gente e meios, limitámo-nos a reunir o que conseguimos, preparando menos sacos do que habitualmente, cerca de 100.
Fizemos o percurso da cidade e bairros levando num carro os sacos e alguns termos de café, e noutro mais sacos e café com leite.
Procurámos ir juntos mas, de vez em quando, o segundo carro desviou para ruas laterais em apoio dos que se não juntam nos pontos normais de apoio, como foi no Bom Sucesso e na Praça da República.
O que encontrámos ontem? O normal, a fome, a avidez de algum apoio e proximidade, miséria, muita miséria nos Bairros Pinheiro Torres e Pasteleira. O Aleixo já foi: apenas um "utente". O de Pinheiro Torres é a antítese do nosso mundo. Perfeitamente surreal, o espelho da verdadeira dependência, da ausência de dignidade, da subjugação ao vício, à doença, ao mal, talvez à morte que ali ronda.
Arrepia vê-los aos grupinhos de dois, três, a injectarem-se, a fumar, inalar, sentados ou estirados no chão nu dos átrios e corredores da velha fábrica desmantelada, cercados de lixo e trapos!...
Não escolhem idades mas a preponderância é de jovens na casa dos vinte e trinta anos, de ambos os sexos.
De vez em quando um carro chega veloz, trava e pára; saem de dentro um ou mais, abordam alguém e não se demoram; com a pressa com que vieram assim partem. Carros de boas marcas, comuns e táxis, é vê-los a toda a hora a ir e vir.
- Não percebo como é que estas pessoas continuam a "cair" nesta vida!... - desabafou uma companheira de vinte e poucos anos ao ver uma dependente mais ou menos da sua idade.
São vidas estragadas, carreiras interrompidas em idade promissora de tudo o que a Vida lhes poderia reservar. Meditando nisto, dói!
Do dia de ontem, melhor, da noite de ontem, retivemos ainda na mente a imagem das lágrimas daquele pai que fez tudo o que pôde pelos filhos e que agora, em resultado de um casamento desfeito, tem como seu apenas um recanto da Rua D. Manuel II...
E a imagem do Fernando, um de muitos fernandos dessas ruas, a quem foi oferecido o recolhimento de um quartinho, mas que rejeitou, preferindo um tugúrio sem condições nem segurança, de onde foi obrigado a sair. Continua na rua, perdeu a alegria, alguma esperança na vida, anda desmazelado que mete dó, já quase que nem a fala se lhe entende, escorre-lhe a sopa pela barba, caem restos no agasalho... Socorre-o na oportunidade a diligente amiga M.L. que vai aos Samaritanos pedir guardanapos para o limpar!
E por que é que está assim? - perguntar-se-á. Porque preserva tanto a sua independência que sistematicamente rejeita o auxílio que lhe estendem...
É uma luta constante na rua a escolha entre a preservação da liberdade e a aceitação de ajuda ainda que com limitação de parte dela.
Não é assim que funciona a sociedade? É, mas não para eles que, em grande parte, sempre se viram à margem dela e das leis.
Foi uma noite conduzida sob o lema "poder e serviço" em São Lucas, 22, 24, e terminada com uma oração na rua, na Pasteleira. Ali, numa roda fechadinha, e com todos eles e as suas necessidades em nossas mentes rezámos e cantámos em surdina: "em nome do Pai, em nome do Filho, em nome do Espírito Santo estamos aqui para louvar, bendizer e adorar, estamos aqui, Senhor, ao teu dispor... Deus Trino de Amor!...".

Até Abril.

C.

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