domingo, 18 de março de 2012

Lição de 4ª. Feira

"Algumas vezes sabemos dentro de nós que devemos fazer qualquer coisa semelhante a plantar uma árvore, mesmo sabendo que nunca comeremos dos seus frutos nem descansaremos à sua sombra.

Ou descobrimos que devemos aplicar-nos não tanto ao nosso pequeno problema, mas a reconstruir as ruínas imensas que nos rodeiam. E nunca como então somos tão grandes. E nunca como então estamos tão perto de nós mesmos."

Paulo Geraldo

Quem planta uma árvore mesmo sabendo que nunca comerá dos seus frutos, não é egoísta, e também não o é quem está mais interessado em acorrer à fragilidade do outro do que interessado em sí próprio.

Este foi o belo pensamento que a dupla Suzana/Hugo nos deixaram para meditarmos durante a semana que antecedeu a nossa última saída na Quarta-Feira.

É o altruísmo a prevalecer sobre o egoísmo, o amor sobre o ódio, a generosidade sobre a ganância (avareza), a humildade sobre o orgulho...

Em abstracto todos sabemos já essa lição. O que me surpreendeu foi o facto de termos encontrado o seu negativo na Quarta-Feira à noite, personificado num sem-abrigo ocasional com que deparámos na Rua de Camões.
Estávamos já a "desfazer as malas" naquele sítio quando aparece um par, perfeitamente desemparelhado, ele com 81 anos, ela com 38. Ébria, procurava nele amparo, ele achava nela nem sei o quê que lhe servisse. Mas faziam um par. Ela ria sem motivo, ele arrastava uma mala como quem vai para a residencial. Encostaram-se a outros dois na escadaria do prédio preparando-se para ali passar a noite. E foi então que começaram as "apresentações" por parte da companheira, dando todas as referências dele, de onde era, o que fazia, etc.

Como quem diz um segredo sem lho pedir, foi dizendo:

- É cleptomaníaco!

- Leva para casa tudo quanto apanha...

- Tem "lá" um armazém cheio de quinquilharia...

- Até guarda-chuvas avariados ele leva para casa! E palitos que encontra!...

- A mulher dele - tem mulher, sabia? - trata-o bem, trata-lhe da roupa e da comida, mas ele não quer saber e volta e meia dá à sola e anda por aí. Então a mulher deita-lhe os guarda-chuvas ao rio.

- E eu volto lá buscá-los! - completou ele.

E acrescentou:

- Um palito tem utilidade, Sabe?

A mala estava ali mas ainda estava vazia.

- É para meter aí o que encontra... - esclareceu ela.

- Então quando vai para casa leva-a cheia? - perguntei.

- Pois, é para meter aí as coisas. Sabe, ele tem muito dinheiro, tem carro e tudo! É rico!

- Já lá tive sete de uma vez! - respondeu ele. E ria.

- Se tem dinheiro, onde é que vai dormir hoje?

- Hoje?!... Aqui!

- Então, podia ir para uma pensão... dormia bem numa cama quentinha...

- Uma pensão custa dinheiro!... Uma pensão custa dinheiro!...

- Ele é assim!... - exibia ela o punho fechado. Não gasta um tostão!

- O dinheiro pode fazer falta! - continuava ele.

Achei que devia tentar destapar-lhe a cataplana em que está, e perguntei-lhe se nunca tinha dado nada a ninguém. Olhou-me meio espantado.

- Dar?!... P'ra quê?

- A alguém que precise!

- O quê?

- Um palito por exemplo...
- Mas um palito tem utilidade!... Um palito pode ter utilidade!...

- Sabe que há mais prazer em dar do que em ter ou recber?

Não, o C. não sabia... E ali ficou sem saber. A cataplana continuou hermética.

Egoísmo concentrado. Dali não sai nada.

Vim para casa a pensar nas duas atitudes em confronto: uma concentrada no outro, a outra concentrada no eu, ao cúmulo. Nesta última atitude o outro está sempre ausente, nem existe sequer. Só o eu, o meu, o ter.

Estampa perfeita da parábola dos talentos. Quanto rendem os deste homem? NADA!... Não geram amor, nem amizade, nem bem, nem riqueza. Nem servem até para nada a não ser para a esperança de virem a servir, o que nunca acontece.

E dei ainda comigo a pensar no porquê de nos ter surgido nesta noite este exemplar para quem tudo tem utilidade desde que seja ele o servido, o beneficiado, e que nunca tem um olhar para quem o serve, ajuda, apoia, trata, como é o da esposa que permanece sempre em casa de braços abertos para o receber depois de cada arruada, noites seguidas a deambular sem rumo certo, companhias de ocasião, ao Deus-dará...

81 anos!...
 
A quem aprova Deus, àqueles que agem sem esperar benefício ou retribuição como sugere Paulo Geraldo, ou aos que procedem como C. para quem os degraus dum patamar servem para dormir porque uma pensão custa dinheiro, e que tudo arrebanham porque até um palito pode ter utilidade?

 
C.F.

domingo, 11 de março de 2012

Sr. Santos

Caros amigos:
Às vezes as notícias que não temos chegam-nos quando não as procuramos. Ontem alguém me perguntou pelo Sr. Santos, o camionista de Aveiro que parava junto à bomba de gasolina do Campo Alegre, logo a seguir ao Capa Negra. Como o nosso grupo foi reforçado o ano passado com uma segunda carrinha nem sempre dá passar por ali e não tinha notícias para dar.

Ao fim da tarde, quando subia uma rua perpendicular ao Campo Alegre, perguntei por ele ao José, que estava envolvido na tarefa de arrumador de carros. Respondeu-me que já tinha falecido há cerca de um ano...

Seria verdade ou má interpretação?

Hoje, passando por ali, espreitei a mina onde dormia, no Horto das Virtudes. Lá estava a tenda perfeitamente montada. Desci e chamei: sr. Santos!... Saíu de lá o José a dizer: então não lhe disse ontem que ele faleceu há um ano?!...

Ficou confirmada a notícia. O José é o herdeiro do seu lugar na mina onde continua o ritual do dono anterior, como atestam as roupas estendidas a secar na corda...

Não mais será preciso deixar o saco "no canteiro junto à parede".

Fica-nos a recordação das quase horas que demorava a expor os seus conhecimentos de informática, sempre loquaz, sem dar quase tempo a podermos entrar na conversa.
Mais uma intenção a colocar nas nossas orações pela Paz Eterna dos que já partiram.
PNAMGP
C. F.

quarta-feira, 7 de março de 2012

2012 e a rua continua...

Com saídas já realizadas em Janeiro e Fevereiro continuamos a nossa missão...
No princípio do ano e, mais concretamente, em Fevereiro, encontrámos as ruas quase que semi-desertas por causa do frio e da deslocação de muitos para locais de abrigo de recurso: a Casa da Rua e instalações da Câmara Municipal. Perante o sucesso da operação ainda acalentámos uma ténue esperança de que pudesse servir de catapulta para se avançar definitivamente para a criação de locais permanentes de abrigo mais ou menos abertos sob a supervisão dos responsáveis da Segurança Social ou de outros organismos que têm a responsabilidade de velar pela segurança e qualidade de vida das populações, mas, erro meu, tudo voltou já ao princípio sem se vislumbrar uma nesga que permita adivinhar que se decida ir por aí...
Às vezes as soluções são tão fáceis e estão tão ao alcance das nossas possibilidades que até escandaliza que não sejam equacionadas! Será o nosso feitio de querer tudo sempre muito bem feito, à medida de cada um e, também, dos organismos de controlo que foram criados para assegurar o normal funcionamento da sociedade que entrava o avanço? Esses organismos, é fácil ver, acho que não têm lugar aqui tratando-se de situações à margem da própria sociedade cuja gravidade e marginalidade se pretende minimizar.
Assim sendo, por que não andar para a frente, contado com o mínimo e a boa vontade de quantos já estão empenhados em acorrer gratuitamente a quem precisa?
O certo é que a rua começa novamente a encher-se passada que foi a arremetida daqueles dias mais frios do que é costume, e esqueceu-se o principal. Resta a "solidariedade" daqueles que teimam todo o ano em repetir todos os dias os mesmos gestos de aconchego e amizade sem esperar retribuição que não seja a de ver regressar àqueles rostos um vislumbre de alegria quase sempre fugaz, e o reconhecimento da sua identidade humana.
Desabafos...
Com o saco que entregamos fica sempre algo de nós. É mais do que isso o que lhes damos. Coragem, Fé, Esperança, um rasto de Amor...
Chegados aqui, vendo crescer o desejo de apoiar e aumentar o número dos que a isso se dispõem, impõe-se que se partilhe a tarefa de organizar, dando azo a que mais e melhores ideias venham enriquecer o espírito de ajuda aproveitando a garra e a juventude dos voluntários que têm vindo a aderir a este projecto.
Os escuteiros de Aldoar abraçaram esta ideia e dois deles dispuseram-se a dar nova cara ao grupo "Franjas Sociais" ao menos durante este ano. Serão eles que responderão e representarão o grupo daqui em diante. É uma passagem de testemunho que abrange também de certo modo a juventude da Paróquia de Carregosa que fica à espera da sua vez. Dividindo tarefas e responsabilidades uniremos mais os nossos esforços com vista ao objectivo de acorrer às necessidades do próximo segundo as possibilidades de cada um sem que fiquemos à espera que outros façam o que a cada um de nós compete: sermos os samaritanos do próximo quando damos conta da sua situação e existência.
Aldoar e Carregosa estão unidas numa tarefa que ultrapassa a mera ajuda aos necessitados.
À rua levamos ajuda, da rua para nossas casas e paróquias queremos trazer nova dinâmica e vivência em Igreja.
A saída deste mês está já a ser preparada pelos novos responsáveis com novidades de figurino e de pensamento, bem como o programa deste ano.
Aguardamos com expectativa o resultado da resposta que daremos ao novo desafio e os frutos que daí advirão para todos.
Parabéns à Susana e ao Hugo, a quem daremos toda a força e apoio de que necessitem.
Parabéns à juventude de Carregosa que persevera neste projecto sem se queixar dos 50 Km que nos separam, com quem esperamos desenvolver um intercâmbio que enriqueça quem de cá e de lá nele está envolvido.
Assim Deus nos ajude!

C. F.