terça-feira, 18 de novembro de 2014

Novembro de 2014


Na última Quarta-feira iniciámos um novo ano em conjunto na rua. Anos de adaptação uns aos outros, de criação de amizades, de um caminhar para um mesmo objectivo: ir ao encontro do "outro", sendo esse outro aquele que mais precisa de apoio e de sentir a proximidade de cada um de nós - os mais débeis, os mais deserdados da sorte, os desprezados, em suma, os excedentes sociais...
Nessa tarefa investimos um pouco de nós mesmos, empenhámos parte do nosso coração. E sentimo-nos felizes por isso mesmo, mas também meio desapontados por vermos que a miséria e a necessidade permanecem perante a nossa impotência! 
Mas, ao fim destes anos, vemos que a rua  já é outra, não tem a mesma cara desprezível e marginal. Mantém-se, e até se viu crescer uma nova face de miséria, mas tudo adquiriu um pouco mais de dignidade, e os comportamentos individuais não causam tanta repulsa e rejeição social como outrora. E porquê? Terá sido porque a sociedade se tornou mais permeável ao sentimento e comiseração? Ou porque a educação do povo o tornou mais sensível à miséria alheia?
Creio que foi o resultado paulatino e persistente do voluntariado de rua que ao longo destes anos foi chamando à dignidade cada um dos que ia encontrando e apoiando como pôde.
O segredo está no amor que se foi espalhando nas ruas do Porto, na amizade que foi dada e semeada em cada transeunte da noite.
Estamos no alvor de uma transição que se adivinha e aponta. Acenam-nos com a criação de locais de tomada de refeições, e com a criação de mais abrigos de curta e longa duração. Tudo isso é bom e vem dignificar quem, seja por que motivo for, se viu privado de casa e de alimentação. Mas nem um nem outro dispensarão que se continue a dar apoio ao irmão na sua debilidade económica, intelectual, moral ou física, e isso será tarefa a continuar...
A nossa última Quarta-feira, como que a encerrar um capítulo, mandou-nos para casa com uma apreciável quantidade de "kits", talvez pela abundância na distribuição, ou pela míngua de utentes. Tiveram como destino no dia seguinte, os carenciados apoiados pelas Irmãs no Lar de Santana, em Matosinhos.
Nessa noite, enquanto uns iam por sua iniciativa receber a sua parte, o João - nome fictício, como quis sublinhar - não foi a lado nenhum, recusando-se a receber fosse o que fosse de alguns grupos a quem acusa de hipócritas, e só aceitou receber o nosso "kit" depois de se certificar que não éramos nenhuma instituição! Não temos nada contra as instituições e somos até solidários com algumas com quem compartilhamos o apoio de rua. Mas o "João" certamente que tem do seu lado algumas razões que o levem a rejeitar liminarmente qualquer apoio que delas venha. Possivelmente algum comportamento individual de que não gostou.
Este e outros como ele, certamente não serão utentes dos refeitórios sociais, dos lares ou dormitórios, e continuarão a justificar a nossa visita - continuada ou esporádica - aos locais que elegerem como a sua casa à luz das estrelas ou dos candeeiros da rua.
Terminámos junto ao Hospital de Santo António, e, desta vez, foi na carrinha que fizemos a nossa oração final e demos as boas-noites a Maria, a nossa Mãe do Céu, pedindo para todos a sua celeste protecção.

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