A nossa noite na cidade
- Hoje leva pouco. Algum pão e pouco mais. Não tem
havido grandes sobras. Já não fica nada para a CASA…
Enquanto falava estendia-me um saco de pão e uma
pequena caixa com alguns salgadinhos e bolos. A CASA é uma associação que
diariamente está na rua por meio de vários grupos de voluntários que com ela
colaboram e asseguram a tarefa da distribuição de alimentos em vários pontos da
cidade.
Mas se uns falham outros surgem. Nos Pinhais da Foz,
onde ficara de aparecer às 20h40:
- Ah!... Já me tinha esquecido! Mas sempre se vai
arranjar alguma coisa.
E a
interlocutora atarefou-se em preparar mais alguns doces e salgados acompanhados
de outro saco de pão.
Se “muitos poucos fazem muito”, os nossos, ao juntarem-se,
proporcionaram a quantidade suficiente para podermos preparar 135 sacos que
rumaram connosco à cidade.
Não foi de nota a história do que se passou nos
Bairros.
Já a cidade nos guardou surpresas dignas de registo.
Tínhamos terminado a distribuição na Rua Júlio Dinis
quando nos chamam porque a Teresa estava com um ataque epiléptico. Acorremos e
demos-lhe ali mesmo o apoio imediato enquanto aguardávamos a chegada do 112 que
uma das nossas voluntárias se apressou a chamar.
No chão, um amigo metera-lhe uma colher na boca para
impedir que virasse a língua, o que poderia sufocá-la.
Vinham recados de fora:
- Tirem-lhe a colher da boca e deixem-na à vontade!
Mas como, se pode sufocar? A mulher estrebuchava e
agarrava sofregamente as mãos que se lhe estendiam como se se estivesse a
afogar. Voltámo-la duas vezes para a direita e para a esquerda seguindo
instruções que iam chegando. E assim estivemos até à chegada do INEM.
Aguardámos a saída da paciente para nos inteirarmos da
sua situação. O diagnóstico era duvidoso mas o apoio que lhe foi dado foi
suficiente para permitir o seu regresso a casa. Com recomendações do INEM e
nossas lá a deixámos entregue aos cuidados do seu amigo de rua e de desdita.
Apontámos à Rua Álvares Cabral. Num dos portais
encontrava-se um senhor que disse chamar-se AAA, como o óleo de girassol que
durante anos nos entrou nos ouvidos e pelos olhos dentro em inúmeros anúncios
da rádio e televisão. Com 67 anos, mas com aspecto de mais uns 15 ou 20, tem
dificuldade em andar. Disse que vai dando uns passitos por ali para que as
pernas não enferrujem… Mais abaixo, sentado e à espera nem ele sabe bem de quê,
outro homem, este de idade bem madura. Um e outro vão dormir ali mesmo, cada um
no seu portal à espera que a Segurança Social lhes arranje o prometido
quartinho. O sr. AAA já leva 4 anos de espera e ainda ali continua…
Viaduto Gonçalo Cristóvão. Estávamos no cenário da
gaivota (recordam-se da cena de Junho?). Rodeava-nos um grupo de uns 10
indivíduos já nossos conhecidos com quem conversámos um pouco.
Descemos à Avenida, demos umas voltas pelas ruas
circundantes da Praça D. João I onde decorria a transmissão do jogo entre a
Argentina e a Holanda para as meias-finais do Mundial. A Praça estava apinhada
mas de sem-abrigo nem sinal. Mas, com aquela gritaria mesmo ali ao lado quem é
que conseguiria dormir?
Passámos pela Rua Alves da Veiga. Apenas um casal.
Rumámos à Batalha onde nos encontrámos com o grupo que passara pelos Bairros. A
CASA distribuía sopa junto ao antigo cinema Batalha e, mais abaixo,
conversávamos com os que apareciam e a quem deixámos os sacos que serviriam
para consumo imediato ou para o primeiro almoço do dia seguinte.
Os portais do antigo cinema eram uma camarata
improvisada onde se estiravam uns 6 indivíduos já enrolados em cobertores. De
entre eles chamou-nos a atenção um indivíduo de aspecto bem idoso, totalmente
desdentado. Delicadamente, perguntámos-lhe de onde era ao que disse ser de
muito longe.
- E onde é esse longe?
- De Vila do Conde, - nos respondeu.
De imediato comparei que aquele longe ficava apenas a
uma pequena jornada do Caminho de Santiago de mochila às costas, às vezes bem
carregada… Mas a sua idade desculparia a dificuldade.
- … Que idade tem?
- Sessenta e dois.
Aí quase que caía de pasmo! Sessenta e dois, aparentando
ter perto ou mais de oitenta, sem dentes e sem capacidade de se deslocar vinte
e seis quilómetros a pé… O que faz a vida a um homem!
Estendemos-lhe
uma Medalha Milagrosa que recolheu e beijou religiosamente. Uma amiga
aproveitou para lhe perguntar:
- O senhor reza?
- Não sei rezar, - respondeu.
- Importa-se de rezar uma Avé-Maria connosco?
- Posso rezar, - nos respondeu.
E foi acompanhando a oração com visível entusiasmo
especialmente quando descobria uma palavra ou frase que lhe avivava a memória
de tempos muito recuados, momento em que se antecipava e elevava a voz como
quem queria dizer: Vêem como também sei? Foi muito gratificante este momento.
Perante os dois casos que encontrámos – um com
sessenta e sete e já com problemas de locomoção, e este com sessenta e dois e
tão senil - temos de agradecer a Deus a frescura e vitalidade de que gozamos,
nós que estamos a somar mais uns anitos do que qualquer deles e temos a graça
de lhes podermos prestar ainda algum apoio!…
Fomos falando com os restantes e distribuindo medalhas
milagrosas que também agradeciam, beijavam e guardavam. Todos o fizeram mais ou
menos da mesma maneira nas diversas paragens que fizemos, todos menos um! Esse negou-se
a receber a medalhinha, ridicularizou a crença e os símbolos religiosos do
crucifixo e rematou a confissão da sua descrença com uma profissão de fé nos
OVNIS e extraterrestres!... Mas, enquanto se afastava de viola às costas lá foi
dizendo que respeitava todas crenças…
Esta mente humana é mesmo muito pobre! Este é o
resultado do poder corrosivo da comunicação social, da educação que não lhe foi
dada e da sociedade a que pertencemos.
No portal do lado estava um jovem de cor com ar um
pouco tímido. Receosos da sua reacção perante a rejeição anterior,
perguntámos-lhe se ele poderia aceitar aquela medalhinha. Contrariamente ao
outro estendeu a mão, recolheu a medalha e beijou-a com respeito.
- Este mundo é mesmo assim: a descrença espalha-se e
cria moda; por isso devemos estar cientes de que haverá cada vez mais reacções
negativas à Fé e a Deus, e estar preparados para nos mantermos firmes nas
nossas convicções – dissemos.
Terminada distribuição, fizemos ali mesmo o nosso
círculo de acção de graças e pedimos a Deus por cada um deles, entregando-os a
Maria a Quem demos as boas-noites com o cântico com que encerramos as nossas
noites na rua.
12 de Julho de 2014
FS
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