quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Outra saída - Outubro 2009

Foi no dia 8 que, por troca e impossibilidade de o fazer na Quarta-Feira, saímos à rua este mês. Isso trouxe-nos alguma complicação porque nem todos ficaram avisados como era conveniente e uma amiga - a M. Elvira - surpreendeu-me na noite de Quarta- Feira com uma chamada em que perguntava onde estávamos e se não íamos à rua naquele dia. Percebi a sua confusão e desilusão porque estava "lá" com os seus mimos, sozinha!
- Preparei estas coisas para eles e não as levo para casa! Se não vêm vou eu levá-las onde puder.
E foi assim que a M. Elvira saíu, acompanhada do marido, pelas ruas do Porto em início antecipado da saída do dia seguinte!...
Acautelada, lá foi informando que, embora sozinha, era a nossa representante naquela noite! Entregou tudo na Rua Júlio Dinis.
No dia seguinte faltou-nos o contributo da Nobreza, que já tinha destino para as suas sobras do dia, e a companhia da M. Elvira, de quem já tínhamos saudades, e nos fazia falta.
Mas, mesmo com essas limitações tudo acabou por correr bem. Frustrada no seu desejo de entregar no Aleixo as descomunais sandes de broa recheada com enchidos preparadas com esmero e carinho, a M. de Lurdes viu ir parar o resultado de todo o seu trabalho às mãos dos que foram aparecendo na Câmara, na Batalha, no Carregal, no H. de Stº. António...
Para sua consolação ainda fomos ao Aleixo com meia dúzia das suas sandes. Por ironia, bastaram! Foram cinco ou seis os que apareceram.
Foi uma noite de encontros. Apareceram muitos de quem não tínhamos notícia e que prourávamos: O Fernando (da Avenida), que fomos encontrar aboletado debaixo das escadas que dão acesso aos sanitários de S. Bento, o António (que já está outra vez num quartinho na R. do Rosário, e que apareceu limpo e asseado), o Francisco (que de alegre até tropeçava nas palavras e nos deu dois fortes abraços).
Junto ao Stº. António reapareceu o Amadeu. Ao lado sussurrou outro:
- Foi meu companheiro na prisão. Acabou de sair da prisão.
- ?!...
- Estive 13 anos em Vale de Judeus. Não nos dão trabalho, temos de nos safar!
Perante essa confissão não provocada, optei por lhe dar um conselho:
- Antes de fazer qualquer coisa pare e pense se isso irá prejudicar alguém. Quando abdicamos de alguma coisa em favor dos outros sentimo-nos mais felizes do que se satisfizermos os nossos desejos.
Lá seguiram ambos em direcção indefinida, na rua e na vida. Tentando safar-se!

Casalinho

Foi no dia 28 de Outubro. À hora habitual reuniaram-se muitos apoiantes dos sem-abrigo da cidade do Porto na escadaria da igreja da SSma. Trindade, em oração com os seus amigos da rua. Numa mistura concertada ao longo da extensa escadaria rezou-se, cantou-se, ouviu-se. Ordeiramente, setados, todos receberam o lanche que lhes era destinado, a que seguiu a partilha de sandes, acepipes, bolos...
Nessa altura fui abordado e chamado à parte pela Sofia que, meio intimidada com o que pretendia expor, começou:
- Sabe... eu e o meu marido amamo-nos muito. Já iniciámos o processo para a desintoxicação e já estamos na metadona. Mas há uma coisa que nos faz muita falta. Em tempos, numa hora má, de desespero, vimo-nos obrigados a vender as nossas alianças... sabe?, a necessidade foi mais forte... Agora andamos com estas que o meu marido arranjou mas não são dignas - e mostrou umas engendradas a partir de fio de arame preto! Nós gostaríamos que as pessoas soubessem que somos casados mesmo. Não nos importamos que sejam de prata ou até de latão! Vamos fazer anos de casados e umas alianças a sério é do que precisávamos.
Ambos com formação superior, tiveram vida digna, emprego, casa, carro. Agora estão reduzidos à sobrevivência nas condições a que a droga os submeteu. Nossos conhecidos de vários encontros anteriores, com eles estabelecemos uma especial relação e sentimos que se sentem amparados pela atenção que lhes dedicamos. Variadas vezes insistimos para que se decidissem a iniciar a reabilitação e respondiam-nos sistematicamente que sim mas ambos em conjunto. Não admitiam ser separados. Por isso rejeitavam apoios das famílias que pretendiam separá-los para esse efeito. Temendo isso preferem manter-se entregues a si próprios, à mercê da caridade e da (pouca) sorte, sem eido onde viver.
- Lá no sítio onde pernoitamos a Sofia é a única mulher mas todos nos respeitam porque sabem que somos um casal.
Tomámos conta dos desejos da S. e do F.. Fazem cinco anos de casados no próximo dia 31 deste mês e vamos, com o contributo de quem quiser, tentar cumprir o seu desejo na reunião que terá lugar no mesmo local na noite do próximo dia 28. Será um momento lindo que lhes trará muita alegria e os incentivará a recuperar a alegria e a Esperança se não perdidas, muito abaladas.
E vamos rezar para que a sua recuperação seja efectiva.
Carlos