quarta-feira, 11 de março de 2009

No alvor da Primavera

O dia 10 chegou depressa, tão depressa que quase nem dávamos por ele. O Fernando continua impedido, a Rosinha tem de cuidar do doente que tem em casa, a Elvira está gripada, a Esmeralda não pôde vir. Mas nem por isso deixamos de nos por ao caminho. Outros vão e vão sozinhos de que é exemplo o sr. M. Rocha que todos os dias aparece no Carregal com dois panelões de sopa (..."- Quantos litros?- perguntei-lhe; avaliei para aí uns 40 em cada panela!...").
Desta vez éramos seis com o Luís, a Mª. Lurdes, a Sofia, a Alda e a Augusta, e tocou à amiga Mª. de Lurdes preparar 4 garrafões de sumo por falta de limões deste lado. Saíu-lhe a sorte grande de trabalho...
Reunidas as ofertas das confeitarias, as sandes, a fruta - maçãs e bananas - e o sumo, tudo arrumadinho em dois carros, juntámos alguma roupa (pouca) e dispusémo-nos a partir. Na nossa oração colocámo nas mãos de Deus todos aqueles que iríamos encontrar no nosso percurso, e colocámo-nos também nós para que pudéssemos ser Seus Bons Mensageiros, com Maria por companhia, medianeira, Rainha.
A Sofia quis abrir a Palavra contida no Novo Testamento. É a Palavra da Vida, é a Palavra Viva. S. João 17,1: "Oração Sacerdotal de Jesus". E foi lendo... As palavras iam soando aos nossos ouvidos como conselhos para esta nossa caminhada, e como certezas de que Deus nos enviava na continuação da exortação que noutros tempos fizera: "A Paz seja convosco! Assim como O Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós." Jo. 20, 21.
"...guarda-os em Ti para serem um só, como Nós somos Um";
"Entreguei-lhes a Tua Palavra..."
"Assim como Tu Me enviaste ao mundo, também Eu os enviei ao mundo..."
"...Não rogo só por eles, mas também por aqueles que hão-de crer em Mim, por meio da sua palavra...".
E como outrora a Palavra de Deus se fizera carne, Deus queria que a Sua Palavra se fizesse Amor, amor desinteressado, sem aguardar paga de qualquer natureza que não seja a satisfação do dever de cristão cumprido. E foi com esse intuito que começámos, com o propósito de lhes levar essencialmente o Amor de Deus. Mas Deus, que nos conhece melhor do que nós mesmos, também nos faz as Suas partiditas! E fez! Quando pensávamos (pelo menos eu!) que levávamos alguma coisa que os nossos amigos da rua não tinham e de que precisavam, Deus mostrou-nos que, pelo menos alguns deles, têm muito para dar e que também nós temos ainda muito que aprender deles...
Porque digo isto? Por me lembrar do António dos Santos, que se diz cigano, e que, ao invocar o nome de Deus bateu no peito com a mão cheia e apontou ao céu iniciando uma profissão de Fé digna do maior crente! E ao acompanhamento do Filipe, outro cigano seu amigo ali ao lado. E então o Zé Manuel, em pleno Aleixo, olhos luzidios tão límpidos como os de um babtizado que acabou de sair da Pia onde lava o Espírito Santo, emoldurados por uma barba e cabelo oleosos e corridos sobre o rosto? Do seu peito pendiam três crucifixos de um porta-chaves...
- Encontrei-os no lixo! Este, do meio, é do que gosto mais. Mas são lindos, não são?
Que lição!... Enquanto uns, findo o uso a que os destinavam, e porque os consideram sem préstimo os deitam fora como qualquer traste sem serventia, outros vêem continuamente neles o que realmente representam e os estimam encontrando sempre para eles, respeitosamente, um uso adequado. E que dizer quando este exemplo nos chega... do Aleixo?!...
"Não rogo só por eles, mas por todos aqueles que hão-de crer em Mim... para que sejam um só...".
Uma vez mais, também o Paulo nos obrigou a redobrado esforço na tentativa de desemaranhar a teia em que continua preso mais por egoísmo e desinteresse alheio do que por culpa sua. É compreensível a revolta que sente, e, escondido sob a aparência da dureza que aparenta adivinha-se um coração de oiro. Rezámos com o Paulo outra Avé-Maria, que acompanhou ainda que continue a insistir que não sabe...
Resignado à sua limitação estava o "cigano" que, ao ver dois moços em fato de treino a correr se limitou a dizer:
-Também já fui assim!... - E, conformado, apontava para a canadiana que é agora sua companheira permanente.
- Algum acidente?- perguntei.
- Veja aqui a minha perna.
- E fez-me apalpar de um e outro lado de onde se adivinhavam ferros...
Entretanto chegam duas moças, com bastante bom aspecto, sendo uma muito jovem, bonita, e que disse já ser mãe.
- Mãe de quanto tempo?
- 15 meses.
- Quantos anos tens? - perguntou o António "cigano" querendo acompanhar a conversa.
- 18!- Estudas? - Perguntei.
- Não! Foi por causa do meu filho que tive de deixar...
- Mas não podes ficar assim... Que ano fizeste?
- Fiz o nono. Agora estou na Câmara para continuar.
- E onde moras? Com os pais?
- Não. Com esta minha amiga, num quartinho.
Dezoito aninhos, um filho de 15 meses, a morar em casa alheia, ocupando um quartinho de uma amiga...
O António "cigano" estava comovido e duas lágrimas ameaçavam saltar. O António, homem da rua, a trajar o vestuário com que dorme, sem casa nem família à distância da sua necessidade, comove-se perante a necessidade alheia e deixa sair:
- "Miséria!"...
Dou-lhe uma palmada amiga nas costas como que para o acordar daquela meditação. É que não basta ter pena, é preciso agir. E a conversa continuou com alguns conselhos de como fazer e a quem se dirigir para tentar obter um quartinho da Segurança Social.No Carregal outro exemplo de coragem, de dedicação, de amor. Isto é mais, muito mais do que simples altruísmo! No seu posto já habitual, o Sr. M. Rocha, de colher de sopa na mão, atendia os últimos. Desta vez ainda tinha uma panela meio cheia.
- Vou para aí que depressa distribuo a sopa toda!
Em dia de futebol foi este o seu desporto. E confidenciou que tinha vindo de Viana, que há dias em que nem tempo tem de comer em casa e que acaba por comer a sopa conjuntamente com eles.
- Para a semana vou à Praça da Alegria!
Vá. E leve consigo todos estes que vai encontrando, berre bem alto que a vida que levamos acomodadamente não é vida de gente enquanto ao nosso lado existir um irmão necessitado, de tudo, ou de muito do que temos e não repartimos!
É Quaresma. A esmola, que é a repartição do que se tem com o que não tem, é um dever cristão com vista à santificação de cada um. Repartição que deve ser efectuada com amor e não em obediência a um dever. O destinatário é o próprio Cristo!

13 de Março de 2009

C.

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