Parece que foi ontem... Mas já passaram três anos desde que iniciámos esta nossa acção na rua, continuando outros dois que foram de aprendizagem. Mas aprender aprendemos todos os dias e é nessa abertura de coração à afinação de procedimentos que Deus nos fala e orienta. As nossas saídas são quase sempre uma incógnita: limitamo-nos a ir e a aguardar as surpresas que nos esperam. E têm sido muitas! Esta Quarta-feira que parecia mísera (da confeitaria vinha um tabuleiro a meio, minguadíssimo!) acabou por ser um dia cheio, cheio, cheio!!!...
Ao chegar dizia-me a amiga Maria de Lurdes, companheira nestas andanças desde o início:- Ai!... Hoje vem tanta coisa! As confeitarias de Leça dão-nos cada vez mais! E lá foi inventariando o que trazia dado, e o que tinham preparado. Tudo a juntar ao açafate da Alda, sempre preparado com esmero e carinho, às 40 sandes da amiga Virgínia (que não vem mas nos empurra a partir de casa), às que nós trazíamos, à fruta, sumo, leite com chocolate constituía um reforço alimentar bem bom. Reforço para uns, base para outros.
O melhor, porém, estava reservado para a chegada: lá nos fomos juntando os habituais, descontando uma ou outra falta por sobreposição de obrigações, mas, a verdadeira surpresa veio com a amiga Maria de Lurdes que trazia como reforço quatro ocupantes de uma viatura!Também juntei o último reforço, a amiga Lucília, já muito traquejada nesta missão e que andava como "free lancer"... E o dia que parecia ser de miséria acabou por ser um dos mais abastados em tudo: farto de alimentos e com uma equipa abençoada de 13 elementos! Deus é assim, de vez em quando surpreende-nos como que a dizer-nos: "-Não sois vós que fazeis..."!
Ainda não tínhamos preparado as coisas e já tínhamos dois clientes, um deles cheio de pressa para que lhe desamparássemos a loja para poder facturar mais uns cobres com o parqueamento nos três lugares que ocupávamos. A nossa paciência acabou por desarmar a quase que insolente e mal agardecida persistência. Passámos rapidamente pela Boavista e ali nos demorámos apenas o tempo de servir dois amigos e de trocar algumas impressões com os Médicos do Mundo. Em Júlio Dinis deparámos com o ajuntamento habitual e com o grupo de Nossa Senhora da Boavista - Foco - onde tivemos a surpresa de reencontrar o Sr. Pe. Paulo e a nossa, embora nova mas já velha, amiga Natasha.
Deu tempo para conversar, para reforçar a distribuição do outro grupo, dar alguma roupa e cobertores, e um pouco de alegria a quem ali estava. E naquele meio destacava-se uma família quase inteira de uma mãe com as filhas e um tio, que ali continuaram depois da nossa partida, à espera, talvez, dos Samaritanos. São meninas em idade escolar que já deviam estar a dormir àquela hora... A caminho da Câmara não perdemos a oportunidade de passar pelo Fernando e de visitar o seu novo vizinho de portal. Ainda estávamos ali quando uma mão caridosa dos vegetarianos lhes trouxe uma sopa quentinha. Mais abaixo, em S. Bento, via-se um numeroso grupo de evangélicos ostentando vistosos coletes reflectores. É assim: a Caridade não tem nome, não tem dono, tem espírito e destinatários. Cavaqueámos com o Morais, aconchegado no portal ao lado da sua última aquisição com o qual não se importou de ficar na fotografia.
- Fiquei lá? - perguntou.
Mostrei-lhe a foto no visor.
- E a... vê-se bem?
Para lhe tirar dúvidas fiz nova foto agora mais dirigida à amiga. Ficaram contentes. Na próxima oportunidade tenho de lha levar. Mais abaixo o Francisco, estava bem disposto e fora do sítio, sem preocupações de escrita
Na Batalha já havia poucos; atendemos os que apareceram e fomos descendo a rua ao encontro dos que agora a tomaram como sua casa durante a noite. Um dormia profundamente, o outro foi a surpresa da noite e uma lição: pessoa que se nega a pedir mas faz um tremendo esforço para ganhar a vida, indo de aldeia em aldeia, rua a rua, porta a porta, sempre a pé, para vender peças que até são pesadas!
- Ganho cada vez menos por causa da concorrência, é preciso espremer a margem de lucro para poder vender alguma coisa e, mesmo assim, vende-se pouco!
- Tinha uma casa e as minhas coisas mas não podia suportar a despesa e tive de a deixar e vir para a rua. Mas tenho tudo guardado em casa de pessoas amigas! E ali estava ele, perfeitamente deslocado, limpo e barbeado, conversa séria e atinada, conformado com as dificulades que a vida lhe reservou para os seus 59 anos...
Assim se dorme num portal...
O Carregal e o seu séquito de utentes aguardava-nos. O Fernando, bastante em baixo, parece que guarda segredos que não conta. Vítima de si próprio e das suas sucessivas más escolhas, creio que está sendo também vítima, como na história do lobo, de alertas infundados ou de oportunidades rejeitadas. Temos de o acompanhar mais e melhor. Acabámos por lhe dar boleia até casa enquanto os outros carros seguiam até ao Aleixo. Como quase sempre, ali voaram os 60 sacos pré-preparados e o resto da fruta, sumo e bolos. Ali se vêem desembocar restos de gente já sumida na voracidade do consumo, e jovens incautos que a ilusão do prazer já prendeu no seu anzol. Na retina de alguns ficaram duas meninas lindas que se deslocavam num Audi que não desdenharam receber o que estava preparado para quem precisa. Ao receberem o "seu" saco iam-no trocando por outro contendo um tapete de arraiolos e objectos que pareciam ser de prata!
- Esse saco é meu!... - apressou-se a dizer uma delas.
Sim, seu de posse, não de verdade porque o seu conteúdo ou foi subtraído à família ou a outrém e nem num caso nem no outro lhe pertenceria. Rezámos no final colocando todos os nossos encontros da noite nas mãos de Deus por, com, em e para Maria apresentar a Jesus recordando a prece que lhe dirigiu na bodas de Caná:
- Não têm vinho!...
Sim, não temos vinho, pão, água, juízo, paciência, compaixão, gratidão, trabalho, amor, família, constância, respeito, paz, oração...Mas temos o pedido constante de Jesus na Cruz ao Pai:
- Pai!... perdoa-lhes porque não sabem o que fazem!...
C.
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