"-Eu Sou A Imaculada Conceição"!
Esta afirmação solene serviria de guia para esta nossa noite. Noite marcadamente diferente pelo insólito, pelo inesperado, pelo improviso, sob a tutela sempre presente de MARIA...
-"Estou num curso, não posso ir!", - disse uma;
-"Tenho reunião de crismados!", - disse outro;
- "A E.... não pode ir hoje!", - informou uma amiga.
Três falhas de peso e de importância. Paciência!... Pensei; Deus providenciará. O problema reside também nos carros; Será que chegam? Outra amiga não deu sinal para arranjar as suas habituais sandes. Os que restávamos preparámos tudo como de costume. À hora habitual ninguém tinha ainda aparecido. Da minha parte tinha preparado e carregado no carro tudo o que me competia: 4 garrafões de sumo, 50 sandes, 2 caixas com bolos e salgadinhos, tangerinas, sacos vazios e 150 copos. Àquela hora já ali devia estar a Alda mas até ela faltava! Nada que me perturbasse.
Na Missa tinha colocado nas mãos da Mãe esta nossa noite a Ela especialmente dedicada. Toca o telemóvel. Era o Luís!
- Está? Sou o Luís, vou mas ainda estou a sair de casa, será que?...
- Sim! Quando chegar à Boavista dê sinal para o ir buscar lá.
Ainda bem. Faltam uns mas Deus manda outros que não eram esperados... Soa novamente o telemóvel. Desta vez é a Alda:
- Olhe, estou aqui há meia hora para entrar na autoestrada! Só há que esperar. Entretanto chega a Maria de Lurdes - de LURDES! - que não vem só. Quando me quer fazer a surpresa nas apresentações é ela que fica surpreendida, tanto como eu!- Olhe quem é!... Nós conhecemo-nos!... Pois conhecemos! Do mesmo grupo de oração, trazidas por mão alheia!... Assim a Isabel, a Laura, a Manuela, a Helena e a Esmeralda, estas duas já habituais, engrossaram o grupinho.
Toca novamente o telemóvel. O Luís precisa de boleia. Meto-me no carro, dou à chave... e nada!... Repito a operação e nada! Não há nada a fazer. Não trabalha!Remediamos com o carro da Alda. À pressa mudou-se tudo para os outros carros. Na oração pedimos a palavra para servir de mote para a nossa jornada pelas ruas da cidade, que foi tirada à sorte pela Isabel: São João, 19, 17-27: "A Crucifixão de Jesus".
Quando começou a leitura minuciosa da morte de Jesus estava eu a pensar no que é que aquela passagem tinha a ver com a nossa noite quando, ao chegar ao final, me soam claras as palavras de Jesus para Sua Mãe
- "Mulher, eis o Teu Filho!", e para o discípulo - "Eis a Tua Mãe!".
Estava feita a ligação. Maria, a Imaculada Conceição, A "Senhora de Lourdes", é Aquela que nos foi dada por Mãe aos pés da Cruz, a TODOS, mesmo aos que nos esperam nas ruas do Porto, famintos, esquecidos, ostracizados.
É o que lhes vamos dizer nesta noite, que, apesar dos males e da miséria com que são brindados pela sociedade têm no Céu uma Mãe que os estima como filhos tanto ou mais quanto estima os que dormem em camas quentinhas e fofas e com a barriguinha farta. Com esta mensagem e esta intenção demos alento a alguns rezando com eles uma Avé Maria. E, enquanto rezava, era ver rolar pelas faces de uma uma lágrima envergonhada! E o Paulo? O durão? Revoltado até à medula, violento de palavras, que só matava e esfolava?
- "Não fazes nada disso, Paulo! Tens um bom coração e isso impede-te de fazer essas asneiras! É contra o teu fundo bom...".
- Sabes rezar a Avé-Maria?- Não! Não rezo. Não acredito em Deus...
- Mas olha que Ele não está à espera que acredites para existir! Ele existe mesmo que tu penses que não existe. A Sua existência não depende do que tu pensas ou não. Olha: vamos rezar a Avé- Maria pensando em ti como se fosse tu a rezá-la. Como só é para teu bem limita-te a ouvir, como amigo.
E começámos a rezar pausadamente. Ao mesmo tempo, o Paulo, sério, tímido, começou a rezar connosco, e, comovido, deixou esgueirar uma lágrima que se escondia sob a capa da insensibilidade! Não conto agora o que nos disse. O Paulo, posso dizer, profetizava! Sei que Deus nos acompanhava e acompanha, mas o que disse é bom demais para o contar.
A noite começou atrasada, tivemos muitos encontros em Júlio Dinis, apareceu gente com necessidade de falar, de ouvir também, de sentir o calor da amizade que lhes levávamos, desinteressada, e isso demorou-nos mais ainda. Por isso encontrámos alguns poisos desertos. Visitámos os isolados, e seguimos ao Carregal. Nova surpresa!... Sozinho, utilitário humilde, de mala aberta ostentando duas grandes panelas uma com sopa de legumes e outra com canja de galinha, e pão, o sr. M. Rocha atendia os nossos amigos.
Duas grandes panelas...
Não resisti que não lhe perguntasse:
- Quem confecciona a sopa?
- É a minha mulher!
- E vem sozinho distribui-la?
- Todas as noites!
Todas as noites estou aqui e, quando não acabo a sopa vou levâ-la por aí a outros locais, até já fui ao Aleixo.
É de pensar!... TODAS AS NOITES dois grandes panelões de sopa!... E uma só mulher a fazê-la e um só homem a distribui-la! E os gastos? Quantas vezes não esbarramos em entraves mesquinhos que nos impedem de ir mais além! Mas estes dão-nos uma grande lição: as coisas importantes são sempre simples; o que importa é querer e, quando se quer, também se faz. Tudo vai do começar, sem olhar para trás nem perder tempo a discutir os pormenores. Os pormenores virão depois. Como nos fazem pequenos estes grandes exemplos!...
Restava ir ainda ao Aleixo. Sucediam-se as caras de fome, chupadas e surradas, e, de permeio, algumas carinhas frescas onde se não apagara ainda a juventude e a esperança. Foi com essas que nos detivemos mais. Falámos-lhes na Mãe do Céu, semeámos amor, deixámos esperança. Dizia-nos uma:
- Já fiz duas desintoxicações a frio.
- Porque voltaste?
- Porque em casa não acreditavam em mim e, se fazia ou acontecia alguma coisa mal era sempre eu a culpada. "Já estás com a dose?"; "estás passada?". Não resisti. Não valia a pena andar a desintoxicar-me para nada. Voltei.
- Mas podes tentar novamente, olha que... e que... e que...
- Vou ver; talvez um dia...
- Olha, vamos pedir à Mãe que te ajude. Tens Fé?
- Vocês são de que religião?
- Católicos.
- Ah!... Eu com os Católicos vou. Acredito neles.
- Vamos dar as mãos e rezar uma Avé-Maria.E foi a última rezada na rua nesta noite, acompanhada de mais uma lágrima comovida, saída do fundo do coração de quem se sabe drogada, mas, ao menos neste pedacinho de noite, com direito a tratamento de gente. Por isso grata.
- Adeus! Boa noite!...
- ficou ela acenando à medida que o carro se afastava.
"- Mulher! Eis o Teu Filho!...";"- Filho! Eis a Tua MÃE!".
C.
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