Foi lembrando e procurando seguir o exemplo de S. João de Deus que organizámos esta nova ida ao encontro dos Sem-abrigo do Porto. Santo português foi o pioneiro na assistência aos doentes e desprotegidos que ia encontrando naquele tempo nas ruas de Granada, cidade onde acabou por ir parar e exerceu este seu apostolado. Podemos dizer que foi o primeiro que se dedicou a acolher e apoiar os sem-abrigo. Daí o têrmo-lo como um dos nossos patronos. A ele é dedicado o dia 8 de Março.
Porque verificámos no passado mês de Fevereiro que foi insuficiente o que levávamos decidimos aumentar as quantidades para 135 sacos.
Terminada a preparação dividimo-nos em dois grupos como de costume, indo um aos bairros e o outro à cidade.
Nos bairros não houve história de interesse para contar a não ser o facto de se não ter verificado a avalanche habitual e terem vindo "às pinguinhas".
Já na cidade as coisas foram um pouco diferentes. Muito do que levávamos ficou na Rua Júlio Dinis, e o resto distribuímo-lo na Câmara, na Rua de Camões, na Praça da República e na Praça D. João I.
Mas três dos nossos encontros merecem ser contados ainda que brevemente.
O primeiro aconteceu na Praça da República com o Ari, indiano de Díli que tem 20 anos de Europa, passados na Alemanha, Holanda, França, Itália, Espanha e Portugal. Há dez anos em Portugal e cinco no Porto encontrou no nosso país um acolhimento que o levou a preferi-lo aos demais. Não pelo dinheiro que aqui há bem menos e menos ou nenhum trabalho. Mas pela receptividade e pelo acolhimento. Do trabalho de anos o que tem está à vista: NADA! A rua por casa, um colchão e uns cobertores obtidos por caridade como mobília. Mas um coração cheio. Para desfazer dúvidas quanto às suas opções face à herança original foi dizendo e repetindo com certa insistência:
- Deus há só um! O que Deus fez, fez bem. Tudo é bom. Eu comer tudo, comer vaca, comer porco, comer sardinha, comer bacalhau...
Exibindo um ferimento recente resultante de uma navalhada que alguém lhe desferiu na palma da mão aconselhámo-lo a dirigir-se à igreja de Nossa Senhora da Conceição que dispõe de tratamento em enfermagem aos sem-abrigo.
Sentados em torno da sua cama, sobre os cobertores ali estivemos um grande bocado mais a ouvi-lo do que a falar.
- Eu falar onze línguas...
E ia-as enumerando. E não se esqueceu de acrescentar:
- Em Goa também se fala português!
Andou meio mundo para não ter nada, mas adquiriu a sabedoria suficiente para poder afirmar convictamente que "Deus há só um" e que tudo o que Ele fez é bom... Coisa que muita gente que se julga mais realizada e inteligente ainda não atingiu!
Descendo para a Rua de Camões vimos um indivíduo a tentar meter num contentor um saco de lixo que teimava em ficar meio de fora. Abordámo-lo e entregámos-lhe um dos nossos sacos. Agradeceu, pegou nele e foi sentar-se a chorar num muro. Achámos que era altura de lhe fazer um pouco de companhia e sentámo-nos junto dele. E contou parte da sua vida, de quando era motivo de chacota na escola pelo facto de ser filho de um lixeiro. Acabou por se dedicar de facto a recolher lixo, a aproveitar parte do que os outros rejeitam. Livros, por exemplo, que depois DÁ a pessoas de quem gosta, ou entrega a alfarrabistas que às vezes lhe agradecem com 5 Euros. E, qual letrado, começou a citar Torga, Camilo, Fernando Pessoa, Saramago...
- Desculpem, mas eu choro com facilidade porque me comovo... - E entrecortava o seu relato com soluços e algumas lágrimas.
Janta na igreja do Marquês, e vive sem aspirações. Despejado de casa vive em casa emprestada por pessoa caridosa. Era "lixeiro" na escola em jeito de profecia e lixeiro se mantém por opção e gosto. Desprendido por natureza, do seu passado tem a memória do que sofreu e a riqueza de alma que mantém. E a lágrima fácil porque tem um coração sensível e bom.
Passando na Batalha encontrámos o Joel. Conversa rápida sem sair do carro porque estávamos em plena rua. Mostrou-nos as tatuagens e conversou. Abandonado aos três anos, foi recolhido da rua por alguém que o cuidou e de quem se não esquece.
O Joel é já nosso velho conhecido mas parece que não se deu conta disso tal a sua insistência em repetir as suas histórias e mostrar a tatuagem.
- Vocês têm muita luz!...
Ficámos sem saber que luz viu em nós ou a que luz se referiu pois tivemos de seguir para não interromper o trânsito.
Encontrado e retirado da rua em criança continua na rua orgulhoso da sua tatuagem e limitando as suas aspirações à fruição da sua liberdade.
Terminámos com algumas sobras de sandes, pão e fruta que tiveram como destino o Lar de Santana, em Matosinhos. Ali soubemos que já são distribuídos diariamente cerca de duzentos almoços a carenciados e sem-abrigo!... Perante a nossa admiração disse a madre:
- São muitos, mas se precisam... Quem nos procura não pode ir embora sem ser servido! Há famílias inteiras!
As irmãs são pobres e vivem da caridade. De graça recebem e de graça dão...
Esta noite foi farta em exemplos de desprendimento e abnegação que nos podem servir de meditação. E nem é preciso ter muito para testar o altruísmo ou o egoísmo.
Corações abertos... corações fechados... Esta noite venceram largamente os primeiros!
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